terça-feira, outubro 19, 2004

...e já que continua a chover

Algumas pistas para descobrir Manuel Bandeira
e ficar em casa a ler


Auto-Retrato

Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.





O bicho

Vi ontem um bicho
Na ímundice do pátio
Catando comida entre os detritos

Quando achava alguma coisa
Não examinava nem cheirava
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato
Não era um rato

O bicho, meu Deus, era um homem



PNEUMOTÓRAX


Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira, que podia ter sido e que não foi.

Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:

- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.

.......................................................................

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo
e o pulmão direito infiltrado.

- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?

- Não, a única coisa a fazer é tocar um tango argentino.




Teresa

A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo crescesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

segunda-feira, outubro 18, 2004

para quando a interdição das segundas-feiras?

... a chuva a pedir-nos que fiquemos em casa, a ler


Os prazeres da leitura

No seu leito de moribundo o meu pai lê
As memórias de Casanova.
Eu vejo a noite cair,
Algumas janelas que se iluminam na rua.
Numa delas uma jovem lê
Junto ao vidro.
Há muito tempo que não ergue os olhos,
Mesmo com a escuridão a chegar.

Enquanto ainda há um resto de luz,
Desejo que ela levante a cabeça,
E eu consiga ver-lhe a cara
Que já consigo imaginar,
Mas o livro deve ser intrigante.
Além disso, que silêncio,
Cada vez que volta uma página,
Consigo ouvir o meu pai, que também volta uma,
Como se eles lessem o mesmo livro.


Charles Simic
PREVISÃO DE TEMPO PARA UTOPIA E ARREDORES
tradução de José Alberto Oliveira
Assírio & Alvim




Minibiografia

Não me quero com o tempo nem com a moda
Olho como um deus para tudo de alto
Mas zás! do motor corpo o mau ressalto
Me faz a todo o passo errar a coda.

Porque envelheço, adoeço, esqueço
Quanto a vida é gesto e amor é foda;
Diferente me concebo e só do avesso
O formato mulher se me acomoda

E se nave vier do fundo espaço
Cedo raptar-me, assassinar-me, cedo:
Logo me leve, subirei sem medo
À cena do mais árduo e do mais escasso.

Um poema deixo, ao retardador:
Meia palavra a bom entendedor.



Luiza Neto Jorge
POESIA
Assírio & Alvim



... propostas para aumentar a colecção

domingo, outubro 17, 2004

Jamais me passaria pela cabeça

Jamais me passaria pela cabeça
mas juro que chegou ao pé de mim
e disse como lhe fazia impressão
que eu outrora tivesse sofrido
- e agora era o que se via.

Quando não conseguia dormir
e o horror, o horror gritava em mim
tive felizmente um amigo
que aceitava aturar-me alcoolizado
quase até ao nascer do sol.

Com isso é que ele não podia.
Eu descia as escadas, dava-me
uma fome tão grande que ia comer
um bife e beber cerveja mista.
Depois aquilo passava-me.




Helder Moura Pereira
Um Raio de Sol
Assírio & Alvim
2000

domingo, outubro 10, 2004

Com Licença Poética


[tomorrow is a long place]Daniel Blaufuks
[mais em http://www.danielblaufuks.com]



Casamento

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

de Adélia Prado
no livro Com Licença Poética, edição Cotovia.

Todos os dias há qualquer coisa que pode arrumar-se junto ao coração

Descoberta de Lluis Llach


SOM TU I JO


Et buscava en el vent,
assegut a la platja,
i quan no t’esperava
has passat dolçament.

I el teu cos tan bonic
retallat en l’onada,
fibra nua que avança,
m’ha sobtat molt endins.

En el màgic color dels teus ulls,
hi he posat el desig dels meus ulls
i com una petjada,
quan minvava la llum,
va quedar una cançó.



ABRIL 74

Companys, si sabeu on dorm la lluna blanca,
digueu-li que la vull
però no puc anar a estimar-la,
que encara hi ha combat.

Companys, si coneixeu el cau de la sirena,
allà enmig de la mar,
jo l'aniria a veure,
però encara hi ha combat.

I si un trist atzar m'atura i caic a terra,
porteu tots els meus cants
i un ram de flors vermelles
a qui tant he estimat,
si guanyem el combat.

Companys, si enyoreu les primaveres lliures,
amb vosaltres vull anar,
que per poder-les viure
jo me n'he fet soldat.

I si un trist atzar m'atura i caic a terra,
porteu tots els meus cants
i un ram de flors vermelles
a qui tant he estimat,
quan guanyem el combat.


© Edicions l'Empordà

sexta-feira, outubro 08, 2004

aracne

Gregor transformou-se em barata gigante.
Eu não: fiz-me aranhiço,
tão leve que uma leve brisa o faz
oscilar no seu fio de baba lisa.
Até que, contra a lei da natureza,
creio que tenho peso negativo,
e me elevo no ar se me não prendo
ao canto mais escuro desta ilha.
Quando descer à teia derradeira
não se verá no mundo alteração, ou só
talvez alguma mosca mais contente.
Em noites de luar, na alta esquina,
ficará a brilhar, mas sem ser vista,
a estrela que tracei como armadilha.

do livro
Aracne
António Franco Alexandre
Assírio & Alvim

A chuva não é desculpa para não ouvir estas palavras.

terça-feira, outubro 05, 2004


Todos os dias há qualquer coisa que podia ir para a colecção



Três cavalos, de Erri de Luca. Edição Ambar

A vida de um homem dura a vida de três cavalos.
É preciosa e simultaneamente desprendida e fugaz.
O homem pode reduzir-se a um par de sapatos, os seus preferidos e ter como o seu único companheiro, íntimo, o livro, no lugar antes destinado à arma, igual segurança.

“Toco o livro no bolso, aqui está um bom bocado de regresso [regresso, este verbo empurra-me], deixo-o estar, é convalescença para os dias que aí vêm.”

“Pego no livro suspenso na marca, volto a acertar o passo pelo dele, pela respiração de um outro que conta. Se também eu sou um outro é porque os livros mais do que os anos e as viagens mudam os homens.”

“ Tira-me o peso do corpo. É o que devem fazer os livros, levar uma pessoa e não fazer com que tenha de ser ela a levá-lo, tirar-lhe o dia das costas, não juntar mais umas gramas de papel às suas vértebras.”

Abra este livro, é leve e tem um “estendal de histórias” curtas, histórias de ninguém onde apetece permanecer até ao instante do mangericão, vinho, queijo e a meiguice desnuda de quatro pés juntos.

“Amanhã, digo, e que importa? Tenho aqui todo o hoje que preciso.”