domingo, agosto 15, 2004

Todos os dias há qualquer coisa que pode ir para a colecção



Gottfried Helwein, Artaud's song 1989


Van Gogh o suicidado da sociedade

Antonin Artaud
(trad. de Aníbal Fernandes)
Assírio e Alvim

"Descrever um quadro de Van Gogh, para quê!"

... este não é um livro sobre pintura ... é uma revolução a falar de outra.

A LER!
(ainda aqui estão?)

sexta-feira, agosto 13, 2004

Todos os dias há qualquer coisa que pode ir para a colecção

O dia em que troquei o meu pai por dois peixinhos vermelhos

neil Gaman & dave Mckean




Pode ler-se na contracapa com cenoura:

O que é que aconteceria se quisesses tanto os peixinhos vermelhos do teu melhor amigo que darias qualquer coisa que tivesses por eles?
Absolutamente qualquer coisa.
Até mesmo o teu pai...


Esta encantadora e divertida história éo primeiro livro para crianças da multi-
-premiada dupla Neil Gaman (argumento) e Dave Mckean (arte).
Uma visão completamente desinibida sobre os riscos de trocar pessoas de quem se gosta que deliciará qualquer um que seja - ou alguma vez tenha sido - criança...

E lá dentro:


"Um dia a minha mãe saiu e deixou-me em casa com a minha irmã e o meu pai.
O meu pai sentou-se em frente à televisão a ler o jornal.
O meu pai não presta muita atenção a nada quando está a ler o jornal."
[...]
"Enquanto o meu pai estava no banho, a minha mãe ralhou comigo.
E quando acabou de ralhar comigo fez-me prometer que nunca mais voltaria a trocar o meu pai fosse pelo que quer que fosse.
E eu prometi.
Por isso, não volto a trocá-lo.


Mas nunca prometi nada sobre a minha irmã..."


A melhor definição deste livro está na legenda dos autores:

Neil Gaman (arte)

[Este livro está em Portugal pelas mãos da Vitamina Bd e foi traduzido por Pedro Silva]
















Todos os dias há qualquer coisa que pode ir para a colecção



então me deito junto à água e entro
de repente nos pulsos: o que amei perdura,
vão-se apagando lentamente as asas
inclinadas dos projectores, as pálpebras
bocejam a alegria azul dos dedos,
estendo os braços e os animais aguardam
de dentro das redes esticadas, abertas,
e um pássaro pousa nos ramos, nas folhas,
seguro do silêncio onde os tiros caem
sobre a água e devagar mergulham,
e respiram no fundo um corredor imóvel.

António Franco Alexandre
(à tua espera na página 19) de Poemas, Edição da Assírio & Alvim


um bicho abre no azul
o lugar de guardar-se: em concha, em osso,
em móvel crueldade.
rasga os dentes o lugar dos ossos.
interminavelmente oculta
a ocupação dos astros.
em seu lugar se guarda. mistura
no sangue e na saliva o azul, a carne.
faz, ocupado, o tempo: e ocupa
enterrado as palavras, em seu osso.

mas os olhos: nossos um bicho guarda,
intactos em seu tempo, intermináveis.


António Franco Alexandre
(à tua espera na página 59) de Poemas, edição da Assírio & Alvim


Continuação da viagem

Sexta 13 de Leitura no Navio

Ao lusco fusco Mário?



O jovem mágico

O jovem mágico das mãos de ouro que a remar não se cansa muito e olha muito depressa (como se fosse de moto) veio hoje ficar a minha casa
Vivia longe longe já se sabia
tão longe que era absurdo querer determinar
metade campo metade luz
aí era a sua casa o sítio onde era longe

mesmo de olhos fechados (como ele estava)
e de braços cruzados (como parecia dormir)
o jovem mágico das mãos de ouro
que era todo de empréstimo à minha noite

que falou por acaso que nem se chamava assim
(segundo também contou) tinha vivido há muito
ele, que estava ali, era um falsário
um fugido de outro basta ver os meus olhos

nada sabemos de nós a não ser que chegamos
sem uma luz a esconder-nos o rosto
belos e apavorados de estranhos casacos vestidos
altos de meter medo às aves de longo curso

nem há noites assim não há encontros
ao longo das enseadas
não há corpos amantes não há luzeiros de astros
sob tanto silêncio tão duradoura treva

e não me fales nunca eu sou surdo eu não te oiço
eu vou nascer feliz numa cidade futura
eu sei atravessar as fronteiras das coisas
olha para as minhas mãos que te pareço agora?

No entanto surgiu como simples criança
conseguia sorrir sentar-se verter águas
com as maõs na cintura livre natural
ele que era um fantasma um fugido de outro

um que nem mesmo se chamava assim
o jovem mágico nu de todos os sítios da Terra

Mário Cesariny
em Pena Capital, da Assírio (claro)






quinta-feira, agosto 12, 2004

sexta feira 13

a viagem a mário cesariny iniciar-se-á com o poema abaixo e nunca terminará


XVII

eu em 1951 apanhando (discretamente) uma beata(valiosa)
num café da baixa por ser incapaz coitados deles
de escrever os meus versos sem realizar de facto
neles, e à volta sua, a minha própria unidade
- fumar, quere-se dizer.
esta, que não é brilhante, é que ninguém esperava
ver num livro de versos. Pois é verdade. Denota
a minha essencial falta de higiene (não de tabaco)
e uma ausência de escrúpulo (não de dinheiro)notável.

o Armando, que escreve à minha frente
o seu dele poema, fuma também,

Fumamos como perdidos escrevemos perdidamente
e nenhuma posição no mundo (me parece) é mais alta
mais espantosa e violenta incompatível e reconfortável
do que esta de nada dar pelo tabaco dos outros
(excepto coisas como vergonha, naturalmente,
e mortalhas)

(que se saiba) é esta a primeira vez
que um poeta escreve tão baixo
(ao nível das priscas dos outros)

aqui, e em parte mais nenhuma,
é que cintila o tal condicionalismo
de que há tanto se fala e se dispõe
discretamente (como quem as apanha).

sirva tudo de lição aos presentes e futuros
nas taménidas (várias) da poesia local
Antes andar por aí relativamente farto
antes para tabaco que para cesariny
(mário) de vasconcelos.



Mário Cesariny

manual de prestidigitação
assírio e alvim
1981

quarta-feira, agosto 11, 2004

Obsessão ou como é possível viver

[Dentro de um Cd]


SERVIÇO DE ABASTECIMENTO DA PALAVRA AO PAÍS

Vieram ter comigo dos lados do mar. Eram três, eram três mil. Vi
que era pão que procuravam ou que não era pão que procuravam.
Pus-me a distribuir por eles as minhas palavras: árvore, pássaro,
mar, criança, rapariga, mulher. A cada palavra minha eu ia-me
esvaziando. Era a vida, a minha vida que se me ia.
Eles ficavam incendiados. Nunca tinham pensado que se pudesse
comunicar assim coisas próprias. Vieram mais,
muitos mais dos lados do mar. Disse-lhes: morte, deus.
E caí redondo no chão. Naquele dia ficou instítuído o serviço de
abastecimento da palavra ao país. Ainda vieram ter comigo, dizendo
para eu arranjar outra designação, que aquelas iniciais não podiam ser.
Mas eu já habitava plenamente a minha morte, meu planeta desde tenra idade.


Ruy Belo, Poemas de Ruy Belo ditos por Luís miguel Cintra
Audiolivro da Assírio

E já que está a chover (2)




PEQUENO VADE-MÉCUM
Michel de Montaigne
Tradução: Luís Leitão
Revisão: Ana Paixão
125 páginas - € 12,00
Ano da Edição: 2004
Edição: Antígona

Pode ler-se do lado de fora

"É surpreendente, quatro séculos depois da sua morte, que a densidade do pensamento de Michel de Montaigne (1533-1592) nos ofereça ainda tanto para descobrir. Montaigne, que nasceu e morreu numa época marcada pelas intolerâncias de protestantes e católicos, fez dos seus Ensaios um hino à vida, um hino tenaz e inadiável. E, quando, a mais de quatrocentos anos da sua morte – neste nosso tempo de tolerâncias forçadas, complacências de superfície, outro modo afinal de engordar fundamentalismos e guerras santas, abusos do Direito (sendo este um oportuno alheamento do ser único), formas sub-reptícias de assacar e infligir o poder –, relemos este autor, somos arrebatados pela modernidade do seu espírito: a recusa absoluta de transformar a opinião em poder, o desprezo pela violência, a defesa intransigente do prazer.
Este Pequeno Vade-mécum, composto por fragmentos e trechos retirados dos Ensaios, pretende constituir-se um luzeiro para o leitor não especialista penetrar a «floresta luxuriante» de Montaigne."

"Só podemos abusar das coisas que são boas" Montaigne


E lá dentro:

"Ulisses

Em Homero, as sereias, para enganar Ulisses e o atrírem para as suas perigosas e ruinosas teias, oferecem-lhe o dom da ciência. A peste do homem é a vontade de saber. Eis por que motivo a ignorância nos é tão recomendada pela nossa religião como qualidade adequada à crença e à obediência. (II,XII)

cf.Fé, Ignorância 2 , Ciência 1"

"Vertigem

Se colocarmos um filósofo numa gaiola de finos arames de malha larga e o pendurarmos no alto das torres da Notre Dame de Paris, ele verá com toda a evidência que é impossível cair e , no entanto, não poderá evitar (se não tiver como mister a cobertura de telhados) que a vista dessa altura extrema o apavore e o faça estremecer. (II, XII)

cf. Costume 3, Imaginação, Medo, Filosofia 1, Sentidos"

"Livro

[...]

2. (Os livros) são as melhores provisões que encontrei
para esta humana viagem. (III,III)
cf. Amor 2, Estudo, Fanatismo 2, Leitura, Memória, Tradução, Viagem 4"


Chuva

não há nada de tranquilo na amnésia



[Jorge Molder]

"Quando eu era criança, durante muito tempo pensei que os livros nascessem como as árvores, como os pássaros. Quando descobri que existiam autores, pensei: também quero fazer um livro."
Katherine Mansfield

Descobrir anjos

"Ser humano é ser corajoso e a felicidade é atingível, se utilizarem o mesmo truque que eu - faço uma colecção de momentos perfeitos. São momentos efémeros que há que saborear - um beijo, uma esplanada ao sol, a leitura de um livro. Todos os dias há qualquer coisa que pode ir para a colecção" Jorge Luís Borges

E já que está a chover (1)


THOMAS BERNHARD
Tradução de JOSÉ A. PALMA CAETANO
ASSÍRIO & ALVIM

"O radicalismo do pensamento de Bernhard, que ele próprio reconhece, classificando-se de «artista do exagero», exprime-se aqui em toda! a originalidade da sua prosa, cuja estrutura musical se revela em «Extinção» extremamente apurada e a essa prosa transmite, mesmo no que ela às vezes parece ter de monótona, um ritmo insinuante e uma estranha fascinação. "
do Prefácio



AUGUSTO ABELAIRA
EDITORIAL PRESENÇA

"Enfim, não sou um pensador (até tenho pena) e nem sequer um pensador acerca de mim próprio. Se fosse um pensador, escrevia ensaios ou tratados, não escrevia romances. Para falar com franqueza, nem sei muito bem, quando escrevo, como gostaria que me lessem, mas talvez seja verdade que procuro alguma coisa que ignoro, que se mantém de romance para romance. Aparentemente, pelo menos, escrevo aquilo que no momento me vem à cabeça, sempre sem plano. E depois esqueço. Não admira, portanto, que os meus romances sejam de migalhas, não tenho uma visão do todo, uma visão consistente do mundo." Augusto Abelaira em entrevista ao CiberKiosk

domingo, agosto 08, 2004

antes para mário

o mário cesariny é o surrealismo. esqueçam os livros de receitas do breton, os métodos e técnicas, as tretas da arte e da literatura. o mário é o surrealismo no sentido (da estrada que começa?) do amor e da liberdade. por isso a revolução não pode parar!

A revolução não tem férias (Parte 3)

9 de Mário dia de Agosto

o dia em que o Navio encosta e dorme

abre todas as portas para uma festa

com poesia para ti Mário





Esta chuva lembra boas conversas com chá quentinho

A livraria que não pára

Jorge Pedro e Sónia Sequeira tinham "uma ideia e seiscentos nomes".
Mário Cesariny resolveu o problema.
Durante uma conversa, sugeriu o nome daquele seu poema que começa assim:
"O navio de espelhos / não navega, cavalga".
Eis como em Julho de 2003, numa pequena rua sem trânsito do centro histórico de Aveiro,
abriu O Navio de Espelhos.
Tomou por lema "a livraria que não pára", e tem feito por merecê-lo.
Em apenas quatro meses de vida, O Navio de Espelhos organizou debates sobre o aborto e a constituição europeia, fez acções de rua, numa fábrica, com escolas, com o Teatro Aveirense, com a Universidade, com uma loja de design, outra de música, outra de objectos para crianças. Além de livros, vende CD de música clássica, jazz e world, tem um pequeno café com jornais e revistas, e acolhe exposições, lançamentos, leituras, conversas, projecções, teatro, animações e concertos. Na passagem do ano fez uma noite branca, e houve gente até de madrugada.
Para uma projecção de slides da Antártida, pôs um cubo de gelo gigante a derreter, à porta.
A livraria está aberta das dez à meia-noite, só fecha às segundas, e quase todos os dias acontecem coisas.
Peguemos, por exemplo, nesta semana.
Terça à noite: aula aberta sobre globalização (todas as semanas há um tema diferente).
Quarta à noite: leitura partilhada (embrião de uma comunidade de leitores semanal).
Ontem: um serão vicentino com a apresentação dos livros "Revisões de Gil Vicente", de José Cardoso Bernardes, e "Ensaios Vicentinos" da Escola da Noite (aproveitando a presença desta companhia no belo Teatro Aveirense, que fica mesmo ao lado d''O Navio).
Hoje à noite: actores lêem Boris Vian ("A Espuma dos Dias", "As Formigas", "O Arranca-Corações").
Amanhã à tarde: a Hora do Conto, com leituras para crianças, como sempre aos domingos.
Como já podem pressentir, o "best seller" não é propriamente a aposta d''O Navio.
"Não promovemos aquilo que já está promovido", diz Sónia.
"Mas se as pessoas pedirem, nós encomendamos."
Não há sessões de autógrafos. Há Harry Potter (o último), mas definitivamente não há livros de auto-ajuda.
Há o "Equador" de Miguel Sousa Tavares, mas não haverá Margarida Rebelo Pinto.
O "top" de vendas, aqui, pode fazer-se com Albert Cossery, Gonçalo M.Tavares (que lançou todos os seus últimos livros n''O Navio), Mário Vargas Llosa ou os audiolivros de Ruy Belo.
Uma casa
O Navio é uma casa antiga de dois andares, com telhado em vê e a fachada do piso térreo toda em vidro.
Jorge: "Um dia vimos um cartaz a dizer que isto se arrendava."
Sónia: "Nessa altura, o Aveirense estava em obras, a rua estava fechada e as pessoas não circulavam. Mas pensámos que se habitássemos o espaço, ele passaria a ser habitado por outros."
O espaço lá dentro é amplo e aberto. Estantes nas paredes, mesas (mas também escadotes, malas ou cestos) com livros em destaque, sofás, a zona de café ao fundo (mais perto dos discos), um grande balcão do lado direito.
Há um som de harpa e depois uma voz, quando entramos (Adrianna Savall, no leitor de CD). Quem comece a ver os livros à medida que vai andando, começa pela poesia. Há uma mesa inteira só para livros da Antígona, outra para livros da Assírio & Alvim (noutro dia, podem ser livros da Relógio d''Água, por exemplo).
Há uma mesinha ao pé da janela que só tem Jorge Luis Borges e Ruy Belo (a pretexto da recente reedição na Dom Quixote da antologia de Borges que o poeta português traduziu).
A seguir à ficção, há uma grande estante pintada de amarelo, cheia de livros infantis, e cubos coloridos e fofos para as crianças se sentarem (ou deitarem).Depois, ficção juvenil, ciência, e, já na zona do café, ciências sociais, filosofia, biografias, livros de vinhos e de gastronomia, uma estante com volumes sobre Aveiro, revistas, jornais, velas, o expositor dos discos.
Pelas paredes há figurinhas pintadas por Rachel Caiano, a mesma artista que coloriu o alegre recanto da casa de banho das crianças (com loiças em miniatura).
Ao fundo, uma escada leva à cave, onde estão livros de arte, BD, cinema, fotografia. O chão está coberto por tapetes e há uma tela para projecções e para o teatro de sombras "A Rainha das Cores", duas a três vezes por semana: "Dá para 50 crianças de cada vez", diz Sónia Sequeira.
"Muitas, nunca entraram numa livraria. A ideia é essa, o contacto com os livros. Não é só entretê-las." A Hora do Conto às vezes é aqui. "Nunca repetimos um conto, todas as semanas é diferente."
Voltando a subir as escadas, ao longo do balcão onde se paga, há também uma velha máquina de escrever, biscoitos, nozes, compotas, chás e cafés.
E O Navio prepara-se para ter provas de vinho.
Como se começa? A Sónia é de Almada, o Jorge de Castelo Branco. Ela tem 30 anos, ele 25. Conheceram-se em Aveiro, para onde ambos vieram estudar ciências. "Éramos uns críticos da cidade", diz Jorge. "Então, pensámos em partir para a crítica activa." Como gostam mesmo de livros, e acreditam que "os livros unem as artes todas", uma livraria permitia "fazer um bocadinho de tudo". Em Aveiro já havia livrarias como a Bertrand, duas Editorial Notícias, a Byblos (que investe muito na venda "on line"), ou a Languedoque, para além da universidade. Não era o deserto. Precisavam de saber como se fazia.
Foram pedir ajuda a José Pinho, da Ler Devagar, a livraria do Bairro Alto, em Lisboa, que apostou em fundos editoriais, horário alargado, actividades regulares e numa zona de café - apostas entretanto adoptadas por livrarias que se tornaram parceiras da Ler Devagar como a Fonte de Letras, em Montemor-o-Novo, e a Vemos, Ouvimos e Lemos, em Serpa.
"Se não tivessemos falado com [José Pinho], a livraria não seria esta" diz Jorge. "A ideia é que isto seja uma rede de livrarias com partilha de saberes. Entre nós há uma coisa invulgar no mercado do livro: partilhamos, sempre que descobrimos uma maneira de as coisas correrem melhor." Seguindo a sugestão de José Pinho, optaram pelo modelo da sociedade anónima. Enviaram cartas a várias pessoas, divulgando o projecto e pedindo sugestões ou apoio. Arrancaram com oito sócios (um deles é a Ler Devagar, que também fornece fundos editoriais), 50 mil euros de investimento inicial, e duas pessoas contratadas para ajudar na livraria.
Abrir portas é só o princípio. "O José Pinho diz que isto é uma maratona", lembra Jorge, que, tal como Sónia, não folga há quatro meses. "Tem que haver dinheiro para sustentar os investimentos", reforça o responsável da Ler Devagar.
"O importante é que possamos fazer por muito tempo o que fazemos de bom."
Quanto a contas, o par fundador d''O Navio, até agora, não se queixa.
Jorge: "Fechámos o ano acima das expectativas."
Sónia: "No Natal, encomendámos menos do que precisámos.
Dezembro foi um mês com uma actividade por dia..." Jorge: "Temos muita gente à hora de almoço, porque está tudo fechado.
À noite é oscilante: quando há actividades, as pessoas vêm." Sónia: "Quando fechámos para inventário, as pessoas ficaram a reclamar lá fora.
À segunda, vendemos quando nos batem à porta..." Jorge: "Como estamos aqui sempre, até às segundas..." Sónia: "Este Verão queremos ter livros portugueses traduzidos, há muitos turistas em Aveiro." Também querem fazer feiras do livro em escolas, como fizeram na fábrica da Renault, e vão fazer de 15 a 21 de Março na Feira da Poesia em Santo Tirso.
E Mário Cesariny? "Ainda não viu O Navio. Queremos que ele venha passar uma semana."

Por ALEXANDRA LUCAS COELHO no Público de 2004/02/21

sábado, agosto 07, 2004

A revolução não tem férias (Parte 2)

E hoje podem escutar-se as palavras de Sophia

"Mesmo que fale somente de pedras ou de brisas a obra do artista vem sempre dizer-nos isto: Que não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser" Sophia no Livro Sexto, Edição Caminho

"Todas a pessoas deixam uma marca indelével no século por onde passam, uma pegada na areia ou o nome escrito em letras de oiro no pedestal das estátuas." Jorge de Sousa Braga



"Vimos o mundo aceso nos seus olhos,
E por os ter olhado nós ficámos
Penetrados de força e de destino

Ele deu carne àquilo que sonhámos
E a nossa vida abriu-se, iluminada
Pela imagem de oiro que ele vira.

Veio dizer-nos qual a nossa raça,
Anunciou-nos a pátria nunca vista,
E a sua perfeição era o sinal
De que as coisas sonhadas existiam.

Vimo-lo voltar das multidões
Com o olhar azulado de visões
Como se tivesse ido sempre só.

Tinha a face orientada para a luz
Intacto caminhava entre os horrores
Interior à alma como um conto.

E ei-lo caído à beira do caminho,
Ele - o que partira com mais força,
Ele - o que partira para mais longe.

Porque o ergueste assim como um sinal?
Pusemos tantos sonhos em seu nome!
Como iremos além da encruzilhada
Onde os seus olhos de astro se quebraram?"

de Sophia, na Poesia em edição da Caminho.



"Sophia é uma forma absoluta de estar no mundo à espera das coisas belas. Cresceu entre rosas nocturnas e manhãs de mar. Escreveu desde o princípio. Lutou com a palavra, quando foi preciso. Não teve medo. Continuamos a aprender com ela." [...]
Era assim a casa das Mónicas nesse tempo antes da revolução: poetas, pintores, figuras da oposição, entravam às horas mais bizarras, recitavam-se poemas, conversava-se madrugada fora, contra as horas obscuras da ditadura. E no centro de tudo, Sophia, a que esperava "o dia inteiro e limpo", que havia de vir.
E veio. E no primeiro 1º de Maio que os portugueses puderam celebrar juntos como nunca em liberdade, Sophia disse: "A poesia está na rua".
"E essa forma absoluta de estar diante do mundo à espera das coisas belas.

Sem medo."


Alexandra Lucas Coelho, © 1999 PÚBLICO


A revolução não tem férias

Ontem o romagnolo de Tonino:



O Despertador

Um despertador exposto sobre um tapete cheio de pó era tudo quanto possuía, para vender, o pobre comerciante arábe. Durante dias, reparou que uma velha se interessava pelo relógio. Era uma beduína, pertencente a uma daquelas tribos que voam com o vento.
«Desejas comprá-lo?», perguntou-lhe um dia.
«Quanto custa?»
«Pouco.Mas não sei se o vendo. Se também este desaparecer deixarei de ter um trabalho».
«Então porque o tens exposto?»
»Porque me dá asensação de viver. E tu porque o queres, não vês que lhe faltam os ponteiros?»
«Faz tiquetaque?», quis saber a velha.
O comerciante deu corda ao despertador fazendo soar um sonoro e metálico tiquetaque. A velha fechou os olhos e percebeu que, na escuridão da noite, podia assemelhar-se a um coração que bate ao lado do seu.
de "Histórias para uma noite de calmaria", Tonino Guerra, Edição da Assírio e Alvim